Sertanejo: de onde veio o gênero mais ouvido do Brasil

De expressão caipira à indústria bilionária, a música sertaneja atravessou o século XX e se transformou no som dominante do país O sertanejo é hoje um dos principais produtos culturais do Brasil, liderando rankings de execução em rádios, plataformas de streaming, festivais e prêmios musicais. No entanto, sua origem remonta a outro Brasil — rural, […]

Artistas se apresentam em show sertanejo: gênero musical que nasceu no interior do Brasil e se transformou em fenômeno nacional ao longo do século XX.
Artistas se apresentam em show sertanejo: gênero musical que nasceu no interior do Brasil e se transformou em fenômeno nacional ao longo do século XX.

De expressão caipira à indústria bilionária, a música sertaneja atravessou o século XX e se transformou no som dominante do país

O sertanejo é hoje um dos principais produtos culturais do Brasil, liderando rankings de execução em rádios, plataformas de streaming, festivais e prêmios musicais. No entanto, sua origem remonta a outro Brasil — rural, invisibilizado e pouco valorizado nos circuitos urbanos. A música que nasceu nas roças, em rodas de viola e festas religiosas, hoje movimenta cifras milionárias e é o gênero mais ouvido do país.

Com raízes profundas no interior de estados como São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso do Sul, o sertanejo se estruturou a partir das modas de viola e da oralidade caipira. Ao longo das décadas, assimilou influências do rádio, do bolero, da música latina, do pop, do eletrônico e da cultura digital. O resultado é um repertório diverso que, hoje, abriga desde os clássicos do sertanejo raiz até vertentes contemporâneas como o sertanejo universitário, o feminejo e o agronejo.

Raízes caipiras: o embrião do sertanejo

O sertanejo tem origem direta na música caipira, formada por letras que narravam o cotidiano rural, a religiosidade popular e os conflitos de família e terra. A viola de dez cordas era o instrumento central. As canções eram transmitidas oralmente, em feiras, festas de colheita e encontros comunitários.

Foi o jornalista e folclorista Cornélio Pires quem profissionalizou esse repertório. Em 1929, ele financiou os primeiros discos de moda de viola com duplas como Caçula e Sorocabinha. Pires não só gravou, como levou esses músicos ao palco e os apresentou ao público urbano, inaugurando o sertanejo fonográfico.

O rádio e as primeiras duplas de sucesso

Entre as décadas de 1940 e 1960, o rádio ajudou a consolidar o gênero. Duplas como Tonico e Tinoco, Cascatinha e Inhana, Vieira e Vieirinha e Inezita Barroso popularizaram o repertório caipira em programas de grande audiência. As canções continuavam narrando a vida no campo, mas incorporavam arranjos com sanfona, violão e violino.

Nesse período, o sertanejo passou a dialogar com ritmos como o bolero, a guarânia, a rancheira e o corrido mexicano. A estrutura vocal em duetos e a sonoridade simples permaneciam, mas o gênero já começava a se adaptar ao gosto urbano.

A virada romântica dos anos 1970 e 1980

Milionário e José Rico durante apresentação nos anos 1980: dupla foi uma das precursoras do sertanejo romântico e marcou gerações com seu estilo dramático e repertório popular.
Milionário e José Rico nos anos 1980: dupla foi uma das precursoras do sertanejo romântico e marcou gerações com seu estilo dramático e repertório popular.

O sertanejo passou por uma ruptura estética entre os anos 1970 e 1980. Com a chegada de duplas como Milionário e José Rico, Chitãozinho e Xororó e Zezé Di Camargo e Luciano, o gênero abandonou a temática exclusivamente rural e investiu em letras românticas e arranjos sofisticados, com bateria, guitarra e orquestração.

A gravação da música “Fio de Cabelo”, em 1982, marcou essa virada. A canção atingiu o público das rádios FM e inseriu o sertanejo na programação das grandes redes de televisão. O gênero alcançava, então, o mercado fonográfico nacional de forma definitiva, rompendo com o estigma de “música do interior”.

Sertanejo universitário: juventude, festas e novos públicos

A partir dos anos 2000, o gênero passou por uma nova transformação. O chamado sertanejo universitário surgiu em festas de faculdade e se espalhou por todo o país. Com letras voltadas para relacionamentos, curtição e juventude, artistas como Jorge e Mateus, Luan Santana, Gusttavo Lima e João Bosco e Vinícius modernizaram o som com batidas eletrônicas e referências pop.

O sertanejo passou a dominar o mercado digital. No Spotify Brasil, o gênero lidera o ranking de músicas mais ouvidas desde 2010. Em 2022, sete dos dez artistas mais ouvidos no país eram do gênero sertanejo.

O surgimento do feminejo e a força das mulheres

Historicamente dominado por homens, o sertanejo passou a contar com a presença de grandes vozes femininas a partir da década de 2010. O movimento conhecido como feminejo teve como protagonista a cantora Marília Mendonça, que mudou a linguagem do gênero ao abordar temas como traição, dor emocional, empoderamento e liberdade feminina.

Junto com artistas como Maiara e Maraísa, Simone e Simaria e Lauana Prado, Marília Mendonça rompeu barreiras e atraiu novos públicos, principalmente mulheres urbanas. O feminejo não apenas abriu espaço para compositoras e intérpretes, como também transformou a imagem do gênero, antes restrito a uma visão masculina do amor e do sofrimento.

Agronegócio, política e o novo sertanejo conservador

A partir de 2018, o sertanejo passou a se associar com maior frequência ao agronegócio e a pautas conservadoras. O chamado agronejo se consolidou com letras que exaltam a vida rural, o trabalho no campo, os cavalos e os valores familiares tradicionais. Artistas como Zé Neto e Cristiano, Luan Pereira e Ana Castela são expoentes dessa vertente.

O discurso político também entrou em cena. Parte do meio sertanejo se posicionou publicamente em temas como patriotismo, religião, porte de armas e defesa da família. Essa nova fase divide opiniões, mas reforça o protagonismo do sertanejo como símbolo cultural de uma parte significativa do país.

Internacionalização e fusões com outros gêneros

O sertanejo também passou a dialogar com o mercado internacional. O sucesso de Michel Teló com “Ai Se Eu Te Pego” é exemplo da capacidade do gênero de ultrapassar fronteiras. Artistas têm feito parcerias com cantores de música latina, pop e trap, ampliando o alcance do sertanejo no exterior.

Combinando tradição e inovação, o gênero se reinventa ao dialogar com o piseiro, o forró eletrônico, o funk e o trap, criando novas linguagens e mantendo a centralidade cultural no cenário brasileiro.

Linha do tempo do sertanejo

Período Fase Características principais
1920–1930 Sertanejo raiz Viola, oralidade, temas rurais
1940–1960 Sertanejo de rádio Sanfona, influência latina, melodias simples
1970–1990 Sertanejo romântico Letras amorosas, arranjos orquestrados
2000–2015 Sertanejo universitário Pop, juventude, festas, eletrônico
2015–2025 Feminejo e agronejo Protagonismo feminino e ruralismo conservador

A história do sertanejo é a história do Brasil profundo que chegou ao centro. É a trajetória de uma música que saiu da roça para os palcos internacionais, das festas de colheita para os palcos de festivais e dos causos contados ao pé do fogo para as letras que viralizam nas redes sociais.

Hoje, o sertanejo é trilha sonora de diferentes realidades: é lamento e celebração, tradição e reinvenção. E segue como o gênero que melhor traduz os afetos, os conflitos e as identidades que formam o Brasil contemporâneo.

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